“Eu creio, malgrado tudo, na vida generosa que está por aí; creio no amor e na amizade; nas mulheres em geral e na minha em particular; no uísque legítimo e na eficácia da aspirina contra os resfriados comuns. Sou um crente - e por que não o ser? A fé desentope as artérias; a descrença é que dá cancro”. (Vinícius de Moraes)
Na tasca, a mesa ao lado é um coral de alarvidades. Uns gritam “Cão estúpido!”, outros gargalham, deixando ver entre os dentes os vestígios da ceia. Na TV, a repórter conta a história de um cão, em Rio de Mouro, que há semanas não sai da porta de um centro de saúde, a aguardar o regresso da dona (que, entretanto, morreu).
Ok, cães chorosos podem ser piegas, mas o que haveria de tão ofensivo naquele relato a ponto de provocar tal rechaça nos presentes? Tristes tempos. Não nos emocionamos mais com as mazelas do homem, nem com as do melhor amigo do homem.
Assim, como que não quer nada, a insensibilidade vai se tornando o novo oxigénio (como o cinismo que expelimos no gás carbónico). Claro, há por aí, muitas pessoas sensíveis (várias delas escondidas, mascaradas de indiferentes). Porém, o bonito agora é mostrar-se inflexível, impenetrável, impermeável (boas qualidades para um chapéu de chuva, mas muito aquém daquilo que, há tempos, se considerava humano).
O elogio da insensibilidade está por todos os lados. As caixas de comentários na internet pululam de violência verbal: “és uma besta”, “tens que morrer”, “violava a tua mulher, a tua tia, os teus filhos”.
No humor (principalmente naquele que viraliza pelas redes sociais), o paradigma é dizer que não há limites. Mesmo que a piada seja usada para denegrir, acusar, julgar e condenar sem provas.
Boa parte dos pais parece acreditar que o bullying não tem nada de grande monta. Que sempre existiu e nunca fez mal a ninguém. Que dar e levar umas bolachas ajuda a formar o carácter, pois a vida é dura.
No trânsito, apitamos impacientemente para assustar o carro da frente, pois temos pressa, temos pressa, temos o pai na forca a espera.
Deixou de haver a obrigação de ser gentil com o velhote empregado de mesa, com a caixa de supermercado de olhos tristes, com a senhora reformada que trabalha como mulher-a-dias para complementar o parco orçamento (aliás, já nem as mães e avós gozam de direitos garantidos no que toca a gentilezas). E, meu Deus, como hoje é caro dizer “bom dia”.
Precisava ser assim? Se a insensibilidade passou a ser um objectivo comum, vale lembrar que não há pessoa mais insensível do que um cadáver. Estamos a morrer antes do tempo.
Não sei como vai terminar a história, mas o rafeiro da linha de Sintra, na sua fidelidade canina, serve para nos recordar que, até mesmo enquanto animais, estamos a aceitar fasquias muito baixas.
Ou como diria o meu Tio Olavo: “Tire a sua insensibilidade do caminho que a minha poesia pretende passar”.
Autor: Edson Athayde
Fonte: Revista Sábado
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